TERRAS DE PENAGOYÃ:

Apesar de nos tempos de hoje não ser uma realidade correspondente ao que era no passado, defendo a sua promoção e estudo. Porque a nossa história deve ser estudada, preservada e publicitada.
SE NÃO DEFENDERMOS O QUE É NOSSO, QUEM É QUE O DEFENDE?
"

Por Monteiro de Queiroz, 2018

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Viseu > Vila Real > Chaves.
Da devoção ao turismo:
O Caminho Português Interior
de Santiago de Compostela

Património cultural jacobeu,
turismo e peregrinação:
O Caminho Português Interior de
Santiago de Compostela (CPIS)
Xerardo Pereiro (Coord.)
PASOS
Revista de Turismo y Patrimonio Cultural
Pasos Edita, 25
www.pasosonline.org
http://www.pasosonline.org/Publicados/pasosoedita/PSEdita25.pdf

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Arlindo de Magalhães Ribeiro da Cunha, pág. 5

Capítulo 1
Viseu > Vila real > Chaves.
Da devoção ao turismo: O Caminho Português
Interior de Santiago de Compostela
ARLINDO DE MAGALHÃES RIBEIRO DA CUNHA
Universidade Católica Portuguesa (UCP)
cunharlindo@gmail.com

1. Introdução
Este texto é resultado de uma palestra sobre o Caminho Português Interior de Santiago de Compostela, ministrada na UTAD (Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro) em Vila Real (Portugal) o dia 5 de abril de 2017. O conteúdo do texto tem como base uma análise histórica, documental e das memórias sociais de terreno. Foram tidos em consideração os relatos de peregrinação a Santiago de Compostela, as estradas e caminhos históricos, o património histórico-artístico das rotas (ex. igrejas, ermidas, esculturas …) de peregrinação, o património cultural jacobeu em Portugal, a extensa toponímia e hagiotoponímia e a devoção e culto de Santiago de Compostela em Portugal. Ao longo do texto põe-se de manifesto como peregrinar não é apenas um produto turístico, e como o caminho do peregrino é algo mais do que o prosaico caminho do viageiro.
Em 2010 (29 de Outubro), em Chaves, nas IV Jornadas Luso-Galaicas Turismo Cultural e Religioso, eu disse assim:

«… sem medo de errar ou de ser contraditado, o mais belo, o mais espectacular, o mais recolhido, e o mais espiritual trajecto jacobeu português, é o que liga Viseu a Chaves, pela Régua e Vila Real, embora todo ele

Viseu > Vila real > Chaves. Da devoção ao turismo: …, pág. 6

deva estar todo escacado pela auto-estrada entretanto construída! (…)»

O património jacobeu português, e particularmente o transmontano, é, ainda hoje, um tesouro desconhecido, silenciosamente guardado, quando não já violado ou destruído por adeptos de desportos radicais, por veículos todo-o-terreno, por motos 4, por mágicos e iniciáticos, e por todos os peregrinos éticos e estéticos de que falou David Lodge1 . Tenho muito gosto em estar aqui; agradeço à Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro ter-me convidado a vir, e confesso que fiquei felicíssimo quando vi que, neste trabalho, participarão professores de antropologia, de turismo, de história e de biologia. Bem hajam todos: os que me convidaram e os que me vão ensinar.

São de facto imensos os caminhos “de Santiago” que, passado o Douro e atravessando Trás-os-Montes, os peregrinos compostelanos utilizavam para chegar ao pretenso túmulo do Apóstolo em Compostela. Imensos! Tantos que, em toda a Europa e particularmente em Portugal, Trás-os-Montes é o território que gerou a maior concentração de lugares relacionados com o culto jacobeu e a peregrinação a Compostela.

Não falarei da história multisecular da peregrinação ao Finis Terrae e depois a Compostela, porquê? e como? Falarei, sim, do Património que se gerou ao longo e à volta de um caminho romano e depois jacobeu que começava no Algarve mas que, de Viseu a Chaves, se salientou na demanda do pretenso túmulo do apóstolo Tiago.

Nos meados do séc. XII, o Codex Calixtinus, um celebérrimo manuscrito de Compostela, dizia assim: “As cidades e povoações maiores que então existiam na Galiza são as seguintes: Viseu, Lamego, (Dumio, Coimbra, Lugo,) Ourense…”2 .

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1 LODGE, David – Terapia, Lisboa: Gradiva, 1995, p. 257.
2 OTERO, X. Carro (reed.) - Liber Sancti Jacobi “Repito: Calixtinus”, 1992, Xunta de Galicia, p. 410. Seguiam-se depois as mais cidades apontadas: Iria, Tuy, Mondoñedo, Braga la metropolitana, la ciudad de Santa Maria de Guimarães, Corunha, Compostela, aunque todavía pequeña entonces”.

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Arlindo de Magalhães Ribeiro da Cunha, pág. 11

2. De Viseu a Chaves

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Viseu > Vila real > Chaves. Da devoção ao turismo: …, pág. 14

Recorte nosso do original em baixo

Foto 05: Mapa de Viseu a Chaves (Arlindo de Magalhães)

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Em Magueija, melhor, na Magueijinha, existiu uma paroquial “de Santiago”, “acanhada e atarracada”, até que, no séc. XVIII, se construiu noutro lugar uma paroquial nova. Da primitiva nada resta. Mas perduram uma calçada, ainda hoje chamada “caminho de Santiago”, assim chamado, e uma ponte, ambas de origem romana. O povo não esquece!
Chegado a Lamego17, o peregrino podia pousar: “havia umas seis ou sete albergarias” 18. Ainda em Lamego, numa ermida dedicada a Nossa Senhora

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17 Chegava ainda a Lamego um outro caminho “de Santiago”. Vinha dos lados de Moimenta da Beira e Sernancelhe. A chegar à cidade, em Cepões, há um topónimo e ermida “de Santiago”.
18 “havia umas seis ou sete albergarias, e hospital de leprosos, [que] … não deixariam de ter seu hospício ou hospital…; estas casas que, por antonomásia, se chamavam charidades, hoje desapareceram da nossa lembrança” (Elucidário de Viterbo, II, p. 97.1).

Arlindo de Magalhães Ribeiro da Cunha, pág. 15

da Conceição havia um altar colateral de São Gonçalo; numa outra, de Nossa Senhora do Desterro, um altar e uma Irmandade de S. Gonçalo19. Ainda em Lamego na capela da Senhora da Conceição de Paredes havia um altar lateral de S. Gonçalo20. Um historiador diz que «a devoção a S. Gonçalo era uma das mais frequentemente invocadas na cidade [de Lamego]»21.

Em 1682 aprovam-se os Estatutos da Irmandade22 dos Clérigos Pobres de São Bento da cidade de Lamego, da qual (Irmandade) São Gonçalo era padroeiro secundário23;

A seguir, é Santiago de Sande (também Lamego)24, Cambres (Lamego, ermida S. Gonçalo) e Rio Bom, com uma ermida de S. Gonçalo.

No século XVIII, a Régua era ainda uma povoação insignificante. Havia duas freguesias - a de S. Prisco da Régua (a montante) e a de S. Faustino do Peso (a jusante). Não faltavam barcas para a travessia do Douro.

A montante podia subir-se do lado esquerdo do Corgo na direcção de Panóias: na Magalhã (lugar de Abaças) há uma ermida da S. Gonçalo25, logo a seguir a paróquia de Andrães que é de Santiago e em Constantim há outra capela de S. Gonçalo26. Na abóbada almofadada da sacristia da capela da Casa de Mateus há um santoral que inclui Santiago e São Gonçalo.

Em tempo mais recente (quer dizer, a partir da Régua actual), passou a subir-se a Lobrigos (S. João), onde há uma ermida de S. Gonçalo27, passava-se

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19 CAPELA, José Viriato e MATOS, Henrique - As freguesias do Distrito de Viseu nas Memórias Paroquiais de 1758, Braga, 2010, pp. 279.2 e 300.1. Na Sé Catedral havia a capela de Santiago “que renderá dez mil reis”!
20 COSTA, M. Gonçalves - História do Bispado e cidade de Lamego, V, 626
21 Id., III, p. 392.
22 Ver Apêndice: ”Confraria / Irmandade”.
23 Recorde-se o referido sobre a contenda entre dominicanos e beneditinos.
24 Em Santiago de Sande podia, passando em Samodães, chegar facilmente a Penajóia, onde havia uma ermida de Santiago
25 CARDOSO, Luis - Diccionario geografico, ou noticia historica de todas as cidades… de Portugal, e Algarve…, Vol 1, Lisboa, Officina Sylviana, 1747-1751, p. 2/3.
26 Em Lagares (Mouçós), lugar situado num antigo caminho que provinha de S. Martinho de Antas, há uma capela e houve um Confraria, ambas “de S. Gonçalo”. Dali se seguia para Vilarinho da Samardã.
27 De Lobrigos, por Santa Marta de Penaguião, chegava-se a Fontes (paróquia de Santiago e altar de S. Gonçalo na paroquial), na direção de Vila Cova (Vila Real, paróquia de Santiago), onde existe um belo padrão de S. Gonçalo. No adro da igreja paroquial de Santiago de Fontes (Sta Marta de Penaguião) - espero que ainda lá esteja e não o tirem! - há um painel de azulejos que ali terá sido colocado por inícios do séc. XX, ou ainda no XIX, no qual, entre outras quadras, esta: “Dar pousada aos peregrinos / Vale menos do que dar / Moradia às pobres almas / no coração do lugar”. Na afirmativa, o que esta quadra quer dizer isto: Vale mais dar moradia às pobres almas (do purgatório) no coração do lugar - aqui, no adro da igreja de Fontes, por exemplo - que dar pousada aos peregrinos. A peregrinação descera já, e muito, na valorização popular. O painel de azulejos de Fontes é histórico: porque nos dá conta da sensibilidade popular religiosa de um tempo passado.

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à Cumieira (altar de S. Gonçalo na paroquial) e logo se estava às portas de Vila Real, em Parada de Cunhos (freguesia de S. Cristóvão), onde existe também uma capela de S. Roque com Irmandade28;
A jusante, havia mais duas barcas: a que ligava Samodães a Fontelas (Barca do Carvalho*) e seguia para Santa Marta de Penaguião; e depois a célebre barca de Moledo (Barca do Granjão*), criada nos inícios na nacionalidade por D. Afonso Henriques.

* Notas nossas

Quando, em 1289, D. Dinis fundou realmente a Vila Real de Panóias29, subindo do Douro pelo lado direito do Corgo passou a poder entrar-se na Vila, por Folhadela, paróquia de Santiago30 em cuja paroquial havia também um altar “do milagrozo Sam Gonçalo, que pella grande devoçam com que o veneram os moradores desta freguezia lhe levantaram hum[a] irmandade com numero de trezentos irmanos e o festejam com toda a solemnidade no dia dez de Janeiro”31.

Em Vila Real, no «Campo do Tabolado», destruído no início do século XX para se construir a Av. Carvalho de Araújo, existiu, numa Rua de Santiago,

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28 Grande Enciclopédia Portuguesa Brasileira, Vol. 35, 857.1
29 A primeira estrada Viseu - Chaves foi a romana. Passava em Panóias. Agora se aponta por alto a sua direcção: Viseu, Orgens, Pousa Maria, Castro Daire, Magueija, Lamego e logo se passava o Douro. Depois, Galafura ou Poiares, Canelas, Constantim, Panóias, Lagares, Juste, Cidadelha, Vila Pouca de Aguiar, Pedras Salgadas (Rua da Estrada Romana), Sabroso de Aguiar, Oura, Salus (Termas romanas de Vidago), Samaiões, Madalena, Aquæ Flaviæ. Mas quando, em 1289, D. Dinis fundou a Vila Real de Panóias, tudo se alterou.
30 Uma estrada romana que, de Bragança, descia à zona do futuro Porto, cruzava-se, por Panóias, com a romana Viseu-Chaves. Um não curta calçada da bragançana pode ainda ver-se ao lado da igreja paroquial de Mondrões (ao lado ocidental da cidade), bem como a beleza do seu frontispício. Não podem também esquecer-se as freguesias de Vila Marim (Vila Real, que teve uma Confraria de São Gonçalo) e de Santiago de Lamas de Olo (Vila Real) que, Alvão acima e abaixo, ligava Trás-os-Montes com Mondim de Basto - Braga, a caminho de Compostela.
31 CAPELA (José Viriato) - As freguesias do Distrito de Vila Real nas Memórias Paroquiais de 1758, Braga, 2006, pp- 545-546.

Arlindo de Magalhães Ribeiro da Cunha, pág. 17

uma capela do Apóstolo, que, até ao século XVII, foi sede de uma Confraria32 de Santiago. Houve também uma Albergaria de S. Brás, onde após alguns abusos, em 12 Outubro de 1395, D. João I sentiu necessidade de proibir os nobres e outras pessoas poderosas de se aproveitarem dela, pois que - disse o rei - ela só devia servir para “se acolherem muitos pobres e minguados como foe feita para os pobres e romeus e outras pessoas que de direito quiserem hir pousar en ella”33. Em 1703 foi criada a Confraria de São Gonçalo na igreja do Convento de Vila Real34.

Ainda em Vila Real, na Capela Nova (ou igreja dos Clérigos, ver foto 06), de Nasoni, encontrei, em 1989, na sacristia uma bela imagem de Santiago.

Após Vila Real, em Vila Seca (Adoufe) há uma ermida de S. Gonçalo; em Vilarinho da Samardã (uma Confraria do mesmo S. Gonçalo); em Zimão e Fontes, dois lugares da paróquia de Telões (Vila Pouca de Aguiar), ambos com sua capela de S. Gonçalo. Soutelo de Aguiar ou do Vale, é freguesia “de Santiago”.

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32 Ver Apêndice: ”Confraria / Irmandade”.
33 PARENTE, João - Idade Média no Distrito de Vila Real, IV Vol., 2014, Vila Real: Âncora Editora, p. 316. Ver documento da Chancelaria de D. João I, in GONÇALVES, Fernando de Sousa Silva - Memórias de Vila Real, 1º Volume, Vila Real, 1987, p. 143.
34 SILVA GONÇALVES, Fernando de Sousa - Memórias de Vila Real, I, Vila Real, 1987, pp. 183 ss.

Viseu > Vila real > Chaves. Da devoção ao turismo: …, pág. 18

Foto 06: Imagem de Santiago (certamente proveniente da antiga ermida do Apóstolo existente no «Campo do Tabolado» e foi destruído no início do século XX para se construir a Av. Carvalho de Araújo). Está hoje na Igreja clérigos ou Capela Nova, de Vila Real

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Apêndice 1.

1. Igreja > Capela > Ermida > Freguesia e paróquia
A palavra grega ecclesía quer dizer reunião de um qualquer grupo de pessoas, assembleia popular, etc. Jesus nunca falou na Igreja, nem utilizou esta palavra.

Aos primeiros cristãos, porém, que se reuniam em casa uns dos outros, nomeadamente no “primeiro dia da semana”, começaram a chamar-lhe a ecclesía75 > igreja (que estava em Roma, em Corinto, igreja de Tessalónica, de Éfeso…).

Claro que os cristãos que formavam uma ecclesía > igreja começaram a ser muitos. Logo tiveram de procurar ou construir grandes espaços para caberem todos. A esses edifícios - não já ao conjunto dos cristãos - passaram então a chamar-lhes igrejas.

Mais tarde, além das igrejas grandes, surgiram outras, mais pequenas: as capelas, igrejinhas pequenas - quase todas só com um altar - normalmente situadas em lugares ermos (donde ermidas) e altos (que substituíam antiquíssimos templos pagãos).

Com o tempo, a palavra ecclesía começou a escorregar: ecclesía > iglesía > igreja; e os cristãos, os baptizados > os filii iglesie (filhos da Igreja) > feligreses

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75 étumos + logía = verdadeira palavra-

Arlindo de Magalhães Ribeiro da Cunha, pág. 35

que começaram a ser chamados os fregueses.

Mas, com o crescimento do número destes pequenos grupos de cristãos que se reuniam em igrejas, ermidas ou capelas, precisaram ainda de se organizarem melhor. Os bispos que viviam nas grandes cidades sentiram necessidade de enviar alguns presbíteros, dos que viviam consigo, a evangelizar o mundo rural. Este dividia-se em pagus > pequenas aldeias. Os que nelas viviam, os pagani (isto é, os habitantes dos pagi) ainda não haviam sido cristianizados. E a palavra pagani passou a dizer os não evangelizados, os pagãos.

E cada vez mais foi preciso também marcar com algum rigor o território entregue a cada presbítero. E a cada território se chamou paróquia (do grego pará+oikía, casa ao lado). Paróquia, portanto, era uma unidade territorial de casas de cristãos que, geograficamente, constituíam uma nova iglesia local

Modernamente, na nossa língua portuguesa, a palavra freguesia é do âmbito da administração civil e a paróquia da organização das igrejas locais.

2. ”Confraria / Irmandade”.

«A Confraria pode definir-se como associação de fiéis canonicamente erecta em pessoa moral para o incremento do culto público. A nota específica da Confraria consiste em que tem por fim “o incremento do culto público”, ainda que as obras de caridade cristã não sejam excluídas. (…) O novo Código de Direito Canónico engloba estas espécies de associações na designação genérica de associações de fiéis sem as especificar pelos seus fiéis (câns 321-326)» (BIGOTTE, J. Quelhas - “Confrarias”, in Enciclopédia Verbo, Editorial Verbo Século XXI, Vol. 7, col. 888). (…) “ [Às Confrarias] Dá-se-lhes, também, o nome de irmandades, fraternidades, confraternidades, congregações e, ainda, uniões e associações” (Id., col. 889).

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[18.abr.2020]