Forais Manuelinos
I – Dos forais antigos aos forais novos
1. Municípios, terras e julgados.
Quando se fala de um município ou de um concelho não se está a dizer a mesma coisa que se dirá ao falar de uma terra ou de um julgado: vocábulos que hoje, com frequência, se usam em sentido equívoco, mas que inicialmente correspondiam a realidades distintas. Convém entender o significado exacto destes termos, assim como o de outros que aparecem com frequência quando se estudam os primeiros séculos da história de Portugal.
As terras ou tenências equivaliam a circunscrições territoriais, em que esteve dividido o território, nos tempos mais recuados, para fins de organização militar: um tenens ou rico-homem estava à frente de cada uma dessas terras, cujas áreas geográficas variavam frequentemente, como verificamos pelos documentos, ao comparar o elenco dos confirmantes de diversos diplomas dos séculos XII, XIII e XIV.
Os julgados eram divisões territoriais estabelecidas para fins de administração da justiça, e tinham um juiz à sua frente – e aqui juiz entende-se já no sentido actual. Numa reunião da cúria régia, em 1211, foi determinada a criação de juízes por todo o reino, ao estipular-se que não houvesse qualquer terra que não estivesse sob a alçada de um juiz, isto é, que não estivesse integrada num julgado: nenhum habitante poderia furtar-se desde então à autoridade do juiz, ou ao seu juízo, em caso de delito ou de contenda, e muito menos cair, por usurpação, sob a alçada de autoridades estranhas, como os senhores de algum couto (domínio eclesiástico) ou de alguma honra (domínio nobre), a que a localidade onde vivia o súbdito de facto não pertencia. Ao contrário do que por vezes se tem dito, não se instituíram então os julgados, mas apenas se determinou a sua extensão a todo o reino. Há, com efeito, referências anteriores a vários julgados e muitas mais aos juízes que, pelo menos desde cerca de 1135, existiam em quase todos os municípios.
O município é uma comunidade local dotada de autonomia na condução dos seus destinos. A palavra município não aparece na antiga documentação, embora a usemos com frequência para designar aquela realidade que nos tempos recentes é costume designar com a palavra concelho, e que engloba o território, as gentes e os respectivos órgãos de governo local. Raramente a palavra concílio, sua equivalente na versão latina, aparece nesse sentido nos documentos do séc. XII e XIII. Quando se referem ao município, e sobretudo à comunidade que o integra, os documentos usam, conforme os casos, as palavras «vila», «cidade», «moradores», «habitantes», ou os plurais «vós» ou, quando é o concelho a pronunciar-se, «nós».
Nos mais antigos documentos, concelho entendia-se quer em sentido amplo – e designava a assembleia (do latim, concilium) em que se reuniam os chefes de família, para tratar dos mais importantes assuntos de interesse local – ou em sentido restrito (conselho, do latim, consilium), para designar um pequeno grupo, responsável pela condução dos destinos da comunidade. Este órgão colectivo, que representava a comunidade e tratava do seu governo, é essencial para que se possa dizer que em alguma localidade existia um município.
Com diversas designações se referiam as pessoas que compunham o concelho, entendido no sentido mais restrito: ou genericamente, sem lhes aplicar qualquer nome, mas supondo apenas que eram recrutadas entre os homens-bons (por homem-bom entende-se alguém que não está sujeito a qualquer tipo de dependência, familiar, económica ou social, isto é, um chefe de família que vive exclusivamente dos seus rendimentos); ou como alcaldes, no grupo de municípios que receberam um foral que teve como paradigma o de Numão; como justiças, no grupo de Tomar; ou ainda como de alvazis, designação de origem muçulmana, usada a partir de finais do século XII, nos municípios que receberam o foral de 1179.
O homem que presidia a este concelho era normalmente o juiz, mas em algumas localidades recebia outras denominações, o que por vezes correspondia à acumulação de várias funções: podia ser o alcaide, e nessa altura competiam-lhe também atribuições militares[1]; podia chamar-se alvazir ou alvazil; e um pouco mais tarde, sob a influência do incipiente estudo do direito romano em Portugal, podia ter o nome de pretor.
Por volta de 1135, como já se referiu, os municípios começaram a reivindicar, e conseguiram obter do rei, o reconhecimento do direito de escolherem eles próprios o juiz que presidia ao concelho. Esta característica contribuirá para distinguir definitivamente o município do simples julgado.
2. Forais Antigos.
Os documentos através dos quais a maior parte dos antigos municípios adquiriu existência oficial chamam-se forais[2]. O foral, em muitas circunstâncias, era o documento que iniciava ou que levava à organização de uma nova comunidade; noutros casos, reconhecia e confirmava oficialmente uma comunidade já existente. Nele se definia o território que ficava a pertencer ao município, concedendo-lhe um determinado grau de autonomia; nele se definiam as regras gerais a observar na gestão dos interesses comuns e nas relações entre os seus membros, e destes com os outros indivíduos que viviam fora do termo do concelho, e, de um modo especial, com o Rei, ou, mais raramente, com um senhorio, quando dele estavam dependentes. O foral revestia, por regra, a natureza de documento clarificador e definidor das obrigações e dos direitos fundamentais ou, como na época se dizia, dos privilégios dos munícipes. Através do foral, se favorecia o estabelecimento de novos aglomerados habitacionais ou se criavam estímulos ao desenvolvimento dos já existentes, fixando moradores, promovendo o arroteamento e a exploração das terras, incrementando as trocas económicas, criando estruturas de apoio aos viandantes, no cruzamento dos mais importantes eixos viários, facultando os mais elementares meios de protecção civil e política aos homens livres de parcos recursos económicos, contrabalançando os poderes senhoriais discricionários, de modo a cercear o seu excessivo crescimento e a evitar a subjugação dos mais fracos pelos mais fortes.
Para além da consecução destes objectivos, mais ou menos imediatos, a criação dos municípios permitiu que outros objectivos de fundo se atingissem, como o desenvolvimento económico e social de todo país, no seu conjunto, e a consolidação e defesa das fronteiras, perante as ameaças externas. Naturalmente, a criação de uma importante rede de municípios, numa fase inicial, revelou-se o instrumento mais adequado para organizar e gerir a população dos espaços rurais e dos centros urbanos, e ainda para arrecadar uma boa parte dos proventos necessários ao funcionamento do governo central. A sua distribuição, de norte a sul, por todo o território, com os respectivos centros urbanos, a sua ligação por uma rede viária sumariamente correspondente às necessidades da época, acompanhada pela realização de feiras periódicas, cada vez em maior número, proporcionou a crescente animação da economia, a produção de excedentes, a multiplicação das trocas e a circulação de pessoas e bens através do território, ao mesmo tempo que despertava e favorecia o desenvolvimento dessa consciência da unidade na diversidade, que se tornou a base do sentimento nacional.
3. Corregedores e vereadores.
Após a morte de D. Dinis, a dinâmica que até aí presidiu à história dos concelhos, começou a abrandar. Diminui consideravelmente a criação de novos municípios através da outorga de forais. Essa diminuição deve-se, por um lado, ao facto de a rede de municípios já cobrir satisfatoriamente a maior parte do território. Por outro lado, à falta de estímulo, resultante da pressão do centralismo régio, traduzido não só numa legislação que se aplicava do mesmo modo em todo o lado, sem levar em conta a história das várias comunidades e as suas especificidades, mas também na crescente intromissão dos funcionários régios, especialmente dos juízes de fora e de corregedores, nomeados pelo governo central, nos assuntos locais. A missão inicialmente atribuída a estes era a de tornar mais eficiente a justiça e a administração, corrigindo os erros, suprindo a ineficácia dos juízes locais, remediando a inépcia dos membros dos órgãos concelhios e dos funcionários municipais, mas os povos acabarão por ter razões para se queixarem das suas prepotências e das suas exorbitâncias.
A nomeação pelo corregedor de “vedores”, pouco depois designados como “vereadores”, que se reuniam, em lugar de acesso vedado ao público, para decidirem acerca do que lhes parecesse mais adequado ao governo dos concelhos, como determinava a lei que veio a ser integrada na versão de 1349 do Regimento dos Corregedores[3], não era compatível com o espírito inicial dos municípios.
A eleição dos vereadores em reunião do concelho alargada a todos os homens-bons foi definitivamente limitada pela Ordenação dos Pelouros, promulgada por D. João I, em 12 de Junho de 1391, que passou a constituir, a nível dos concelhos, o mais antigo sistema eleitoral que se conhece. Segundo essa Lei, ficava nas mãos de uma elite a condução dos destinos do município, uma vez que o exercício das funções da governação local se restringia a um grupo escolhido de cidadãos. Com efeito, determinava esta Ordenação que em cada concelho se organizassem e mantivessem actualizadas listas de pessoas idóneas para o exercício dos vários cargos municipais (juízes, vereadores, procuradores), fazendo-se um rol distinto para cada um desses cargos. O nome dos assim recenseados era escrito num papel, e este colocado numa bola de cera (o “pelouro”), por sua vez guardada numa arca – a arca dos pelouros – de onde se fazia o sorteio dos homens que exerceriam cada ano[4].
Mas nem tudo era negativo. Na realidade, embora quase se tenha deixado de outorgar forais, registava-se gradualmente no país uma evolução que aproximava e depois conduzia à municipalização de muitos territórios, dependentes do governo central, os julgados, ou de entidades não régias, até aí designados como coutos e honras. Essa evolução é testemunhada pelos processos constantes do chamado “Chamamento Geral”, posto em marcha por D. Afonso IV, através do qual somos informados da existência de cerca de duas centenas de coutos, honras e outras localidades de senhorio privado, cujos moradores elegiam o seu juiz[5]. Se isto sucedia nesses territórios, com maior força de razão havia de acontecer nos julgados, de directa dependência régia.
Dentro do que acabamos de afirmar, muitas terras, espalhadas por todo o país, transformadas em julgados e equiparadas aos antigos concelhos, não tiveram um foral anterior ao reinado de D. Manuel, e, de algum modo, podemos dizer que nem dele necessitaram. Quanto ao funcionamento das suas estruturas internas, nas relações dos munícipes entre si e com o exterior, regular-se-iam pelas leis gerais, que gradualmente se foram publicando. No aspecto fiscal e no pagamento de rendas, tomavam como referência o registo desses encargos conforme constavam das Inquirições, designadamente das Inquirições de D. Afonso II, que, a norte, foram apenas até ao rio Lima, e das Inquirições de D. Afonso III. Quando não há outros documentos, é a estas Inquirições que se faz referência, ao mencionar o foral antigo, designadamente nos processos relacionados com a outorga dos forais manuelinos.
[1] A designação alcaide remonta ao período em que a jurisdição estava concentrada nas mãos da autoridade militar, nos tempos difíceis da reconquista, durante a qual esses municípios constituíam a linha de fronteira com os territórios sob o domínio muçulmano.
[2] Não era esta a designação inicial de tais documentos. Referiam-se uma vez simplesmente como «carta», tal como a generalidade dos documentos escritos, ou como «scriptum», algumas vezes como «decretum», mas a partir de meados do séc. XII divulga-se e generaliza-se a designação de «carta de foro». Foro é, no entanto, uma designação muito genérica, aplicada a realidades diferentes. Designa muitas vezes as rendas a pagar das propriedades rústicas e urbanas, e, com frequência, mais especificamente, a importância fixa ou «cânone» a pagar anualmente pelo domínio útil das terras, nos contratos de enfiteuse ou emprazamento, chamados também contratos de aforamento. Outras vezes, «foro» designa o estatuto social, jurídico ou fiscal de uma determinada classe ou grupo social, ou de uma determinada área ou sector: foro eclesiástico, foro de cavaleiro, foro jurídico, foro de portagens. Muitas vezes aplica-se aos documentos de que nos estamos a ocupar, isto é, àqueles cujo assunto são as instituições municipais, mas designa tanto o documento em si como o conjunto ou uma parte das prescrições nele contidas, como a tabela das «portagens» ou o censo anual a pagar para o cofre régio. As «cartas de foro» podem classificar-se em três categorias: as de alcance puramente agrário, individuais ou colectivas, que estabelecem as condições de exploração da terra e os ónus a que a mesma está sujeita; as que estabelecem o estatuto jurídico-administrativo das comunidades, contendo as bases da sua organização interna, e regulando as suas relações com o poder central ou com aqueles que dele partilhavam em alguns momentos; finalmente, as que estabelecem mais pormenorizadamente as regras de funcionamento interno da comunidade, e, que na sua origem, resultam de uma compilação gradual de «costumes» ou, em latim, «consuetudines», ou do registo das interpretações ou sentenças dos juízes, a partir daí utilizadas como norma ou referência paradigmática. Apenas os documentos incluídos na segunda e terceira categoria interessam, de um modo geral, para o estudo das origens dos municípios e se podem incluir no grupo dos documentos, para que desde a terceira década do séc. XIV se generaliza gradualmente a designação de foral, que hoje usamos e já era quase exclusiva nos últimos decénios do séc. XV. Aqueles que incluímos na segunda categoria são os forais breves, designadas na Espanha como cartas pueblas ou cartas de poblacion, e é a eles que vulgarmente se alude quando se fala simplesmente em forais. Os da terceira categoria são vulgarmente designados entre nós como forais extensos e, em regra, aparecem em localidades onde já existem forais breves.
[3] T.T., Forais Antigos, m. 10, n.º 7, fl. 31-36 v.º, com data de 1332, e 37-41 v.º, com data de 1378. Transcritos em Marcelo Caetano, A Administração Municipal de Lisboa durante a Primeira Dinastia (1179-1383), 3.ª edição, Lisboa, Livros Horizonte, 1990, p. 131-137 e 138-154. Há outras cópias em Forais Antigos, m. 3, n.º 2 (Foral de Borba), e ainda no Perg.º n.º 31 da Câmara Municipal de Alvito, transcrito por João Pedro Ribeiro, Dissertações Cronológicas e Críticas, Tomo III, 2.ª parte, Lisboa, 1813, p. 93-112, versão do final do reinado de D. Pedro I ou do início do reinado de D. Fernando. Como é de prever, são múltiplas as diferenças que se notam entre as diversas versões. A sigla T.T., nesta nota e nas seguintes, designa o Arquivo Nacional da Torre do Tombo.
[4] O regime introduzido pela Ordenação dos Pelouros foi parcialmente alterado pelo Regimento dos Corregedores, em 1418, e fixado pelas Ordenações Afonsinas, em 1446-1447 (Livro I, título 23, n.os 43-47). Manteve-se em vigor pelos tempos fora, vindo a ser profundamente alterado pelos Regimentos de 1601 e 1640, que introduziu um novo sistema eleitoral, designado como sistema de eleição por pautas de apuramento. Segundo as Ordenações Afonsinas, o corregedor devia chamar à Câmara os juízes, vereadores, procurador e homens bons, para escolherem seis pessoas, que, duas a duas, separadamente, indicariam as pessoas idóneas para o exercício dos vários cargos, em rol distinto para cada um deles. Ao corregedor régio, ou ao juiz mais velho na falta de magistrado régio letrado na terra, competia, contar os votos, seleccionando os mais votados, apurando a lista ou "pauta" dos eleitos; cada um dos nomes dessa pauta era encerrado num pelouro, guardado no saco ou arca, a aguardar o oportuno sorteio, em que as bolas de cera com o nome eram retiradas por um menino com o máximo de 7 anos de idade.
[5] T.T., Chancelaria de D. Afonso IV, liv. IV, fl. 2-107. O “Chamamento geral” foi concluído no reinado seguinte: T.T., Ch. D. Pedro I, liv. I, passim (fl. 27 e ss. até 103 v.º).
in António Matos Reis, Forais manuelinos, https://sites.google.com/site/foraismanuelinos/home, [Consulta em 13dez2017]
Ver +++ em
https://sites.google.com/site/foraismanuelinos/forais-de-dom-manuel-1
https://sites.google.com/site/foraismanuelinos/listagem-dos-forais-manuelinos
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