TERRAS DE PENAGOYÃ:

Apesar de nos tempos de hoje não ser uma realidade correspondente ao que era no passado, defendo a sua promoção e estudo. Porque a nossa história deve ser estudada, preservada e publicitada.
SE NÃO DEFENDERMOS O QUE É NOSSO, QUEM É QUE O DEFENDE?
"

Por Monteiro de Queiroz, 2018

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Conde D. Henrique

DO CONDE D. HENRIQUE

- por D. Fr. Fortunato de S. Boaventura

ENSAIO DE UMA DISSERTAÇÃO HISTÓRICO-CRÍTICA SOBRE OS FACTOS MAIS CONTROVERSOS DA HISTÓRIA DO CONDE D: HENRIQUE, PRIMEIRO SOBERANO DE PORTUGAL, E TRONCO DA AUGUSTÍSSIMA CASA REINANTE.
(por D. Fr. Fortunato de S. Boaventura)

"São quatro os pontos mais controversos da história do Conde D. Henrique, a saber:

1 - De quem era filho?
2 - A sua jornada, ou jornadas à Terra Santa;
3 - As últimas acções da sua vida;
4 - A independência do seu condado.

Tratarei pois de cada um deles separadamente, e a muitos respeitos com algumas novidades.

I Ponto
De Quem Era Filho?

Convém que a discussão deste primeiro ponto seja precedida de um lançar de olhos sobre as opiniões mais seguidas. A primeira, e mais antiga o supõe filho de um rei da Hungria; a segunda, filho e descendente da Casa de Lorena; a terceira, da Casa de Borgonha Condado; e a quarta, e última lisonjear-se de que a sua origem da Casa de Borgonha Ducado é axioma histórico; pois a quinta dos que iludidos da palavra Visontinus, que tomaram por Bisantinus (o que faz tanta diferença, quanta é a que vem de Besançon, cidade de França, à hoje capital do império otomano) é indigna até de fazer número, quanto mais de ser examinada, ou discutida.

II

Coisa estranha foi que os portugueses (todavia sempre inclinados mais ao que é estrangeiro, do que ao próprio e nacional) renunciassem tão facilmente à opinião mais antiga, que pelo menos valia a pena, de que se examinassem as coisas, porque os nosso antigos a defenderam e seguiram unanimemente por espaço de três séculos; e se tivessem feito o que eu agora me proponho fazer em ordem à opinião estrangeira, teriam sido mais remissos em adoptar esta; e pode ser, que o fruto dos seus exames fosse o voltarem sinceramente, e por uma vez, à que tinham seguido os seus maiores. Há outra circunstância histórica, das que devem pesar muito na consideração de todo o crítico prudente e desapaixonado; e vem a ser; que os próprios franceses já na descrição do séc. XVIII mostraram prescindir do argumento mais forte da quarta opinião, voltando à terceira, e sustentando-a com grande aparato de razões, que por certo me não seriam inúteis, se eu as tivesse pedido examinar; e seja esta a ocasião em que anuncie aos meus leitores, que não tive cópia de livros necessários, e a que principalmente devia recorrer, sendo um destes a História do Ducado de Borgonha, pelo Mauriano Plancher, sem que me seja necessário apontar aqui muitos das História do Reino da Hungria, que não se encontram nas mais cópias e selectas literárias deste reino. Assim mesmo porém desprovido de auxílios, que, se os tivesse, não chamaria a este opúsculo ensaio, mas dissertação formal (o que somente me será possível, quando eu recolha todos os subsídios, de que necessito, e que facilmente poderão dar nova face ao meu trabalho) por isso lhe dou um título, não só modesto, porém até necessário.

III

Considero a quarta opinião hoje tão válida e tão universalmente abraçada que, se eu desde logo tentasse expor a minha opinião, bastaria a força de antigas prevenções sustentadas pela gravíssima autoridade do cronista-mór Fr. António Brandão, de Duarte Ribeiro de Macedo, D. José Barbosa, Pe. António Pereira de Figueiredo, e do cisterciense Fr. Manuel de Figueiredo, para obrigarem a maior parte dos meus leitores a examinar desdenhosamente as minhas provas; que tanto é o poder e a influência de certas opiniões abraçadas sem exame, e defendidas mais por hábito, que por efeito de críticas e maduras reflexões. Convém pois que eu desfaça, primeiro que tudo, como o principal dos meus adversários, que se o deixasse como para a minha retaguarda, não poderia ser tão feliz, como espero, o sucesso final da contenda.

IV

Publicou-se em Frankfurt (1596) a colecção intitulada Historiae Francorum ab anno Christi 900 a annum 1285 scriptores veteres XI ex Schedis P. Pithaei, e pouco antes, e na própria cidade outra obra, ou colecção do mesmo género, a que tinha dado o título Annalium et Historiae Francorum ab anno Christi 708 ad annum 990 scriptores couetanei XI, o que parece dar a entender, que ele próprio tinha em maior conta a primeira das suas colecções. Na segunda pois, onde entram os autores antigos sem a qualificação de coetaneos, vem a célebre passagem que dá o conde D. Henrique por filho de um dos filhos de Roberto, Dique de Borgonha, expressão vaga, que por si mesma, e sem outra qualquer ponderação deveria ter causado grande reparo e desconfiança; pois constando pela histórica de França que o primogénito do duque Roberto deixará alguns filhos por sua morte, acontecida uns nove anos antes do falecimento de seu pai, convinha, ou para melhor dizer, era obrigação de quem nos transmitia a história contemporânea, designar de qual dos filhos do Duque Roberto era filho o nosso D. Henrique, mormente quando o próprio MS. de Fleury pouco antes nos havia certificado, do que o Príncipe Henrique tinha dois filhos, que depois sucederam no ducado de Borgonha: "Roberto" diz ele "Duce Burgundiorum obeunte quem supra retulimus, Ainrici Regis fuisse fratrem filio quoque ipsius Aiurico ante obitum patris mortuo, filius ipsiusAinrici Hugo Ducatum suscepit, quo facto Monacho post aliquos annos principatum ipsius frater Odo obtinuit." (1) À vista pois de tanto saber genealógico de uma parte, e de tão pouco da outra, será bem fácil a todos os leitores, ainda que sejam medianamente críticos chegarem ao conhecimento, ou da mais apoucada ciência do anónimo, ou de que os dois artigos são de diversos autores. Dado que seja o primeiro caso, não tem o historiador aquela como suprema autoridade, que vulgarmente perplexos e embaraçados para decidirmos, num prólogo de notícias de vários autores, quais destes foram os coetâneos.

V

Se o MS. de Fleury tira a sua força principal de certos indícios, de que o seu autor foi coevo de alguns sucessos, como por exemplo é o seu modo de falar, Vidimus duos solis, o que recai no ano de 1108, nesse mesmo parágrafo se lhe conhece a sua inexactidão, pois afirma que D. Afonso VI de Castela morreu no mesmo ano, em que também falecera o rei Filipe de França, Rex vero Adefonsus eodem anno, quo et Rex Philippus diem clausit extremum, (1) o que é notoriamente falso, pois é sabido que D. Afonso VI morreu no primeiro de junho de 1109; e se os monges de Fleury eram tão exactos em genealogia como em cronologia, mal podemos afiançar-lhe esse grau de autoridade, que mais por capricho, que por justiça tem desfrutado por mais de dois séculos. Nem o MS. é mais feliz na parte geográfica; e visto ser meu intento mais acrescentar do que transcrever, advertirei aos meus leitores duas coisas importantes, de que ainda farei o uso conveniente; e vem a ser: 1ª que o tal condado de D. Raimundo de Borgonha trans Ararim, que foi um dos argumentos geográficos, de que se valeu o mais crítico e apurado genealógico das Hispanhas (2) para denunciar e convencer de apócrifo o decantado MS. de Fleury até depois da novíssima reposta do cronista dos cistercienses ao citado autor, fica subsistindo em toda a sua força: 2ª que muito maior número de considerações geográficas se pode trazer contra o MS. de Fleury. É necessário explana-las brevemente.

VI

"Não é apócrifo o MS. (assim responde o cronista Fr. Manuel de Figueiredo ao sábio D. Luís Salazar) por chamar conde a D. Raimundo, e dizer que o seu condado era além do rio Ararim. O Autor do MS. não disse que D. Raimundo foi conde soberano de Borgonha, que era só o caso em que fazia força o argumento, por lhe preferirem seus irmãos na ordem de nascer". Daqui se vê que apenas for mostrado, que o Conde D. Raimundo foi conde soberano da alta Borgonha, fará toda a força o argumento de Salazar, e ficará sendo insubsistente esse condado de Amous que se dá na Arte de Verificar as Datas ao Conde D. Raimundo. Ora se este conde nos documentos do tempo do seu governo se qualifica a si próprio desta maneira: Ego Raymundus Providentia Divina Burgundiae Comes, e fala de seu pai o Conde Guilherme, e dos condes Guilherme e Raimundo seus predecessores; e, o que é ainda mais para notar, se o colector Perard achou numa escritura o selo pendente deste conde, em que se via um cavaleiro com a lança enristada, e com estas letras em roda Sigillum Raymundi Comitis Burgundiae, (1) como é possível, que este Raimundo, irmão de Hugo, terceiro de nome, e Arcebispo de Besançon, seja considerado abaixo de seu irmão Estêvão, e excluído da série dos condes de Borgonha, para se lhe assinar um pequeno e obscuro condado trans Ararim? Pois que direi desse Dux Burgundiorum, (aqui entre umas brevíssimas considerações geográficas) pois que direi desse Dux Burgundiorum, quando o título verdadeiro do duque Roberto era Dux et rector inferioris Burgundiae, visto que, ao passo que Roberto governava esta parte da Borgonha, havia na outra um soberano, que sse intitulava Burgundiorum rez (2)? E que direi à evasiva do cronista Figueiredo, que para se livrar do argumento ex Bisantinis partibus nos dá a cidade de Besançon por metrópole das suas Borgonhas, no que já se estribára para o mesmo intento o Pe. António Pereira de Figueiredo (3)? Um dos primeiros cuidados dos exploradores destas antiguidades deve ser o terem abertos, e mui justamente; quero dizer, a cronologia e a geografia; e para que esta nos desse auxílio na questão presente convinha examinar primeiro, qual era no século XI a divisão das Borgonhas, e se Besançon ficava no mesmo reino em que a cidade de Dijon; e achado que fosse estar Besançon no Reino de Borgonha, ou de Arles, e Dijon numa parte do Reino de França, ambos separados, e obedecendo a diversos soberanos, ficaríamos certos, de que o Bisantinis partibus só forçadamente se pode arrastar para Dijon, que muito embora diste de Besançon um só dia de jornada, porém ficava (e este é o ponto essencial) em reino diverso.

VII

Mas tudo isto, conforme os apaixonados do MS. do mosteiro de Fleury, se deve perdoar a um monge coetâneo, que fazendo talvez meramente para seu uso os apontamento da história do seu tempo, não curava de miudezas genealógicas e cronológicas, nem presumia, que os seus escritos houvessem de ser o farol dos sábios, daí a quatrocentos ou quinhentos anos; porém o caso é, que tratando-se de um ponto genealógico de maior importância não basta o ser coetâneo, é preciso terem-se averiguado escrupulosamente as linhagens das famílias, e que o autor do MS. de Fleury, por se enunciar tão obscuramente, como já disse, mostrou desde logo, faltarem-lhe as outras qualidades essenciais de um historiador, e não merece os créditos de juiz infalível em tais matérias: eu o provarei por dois factos, um antigo, outro moderno. É grande entre nós a autoridade do livro de Noa, que não foi escrito em distância de muitos anos depois do falecimento do primeiro rei de Portugal: e que diz ele da genealogia da consorte do Senhor D. Afonso Henriques?... Que era filha do Conde D. Manrique de Lara; e o mais é, que o insigne genealógico D. Pedro, Conde de Barcelos, abraçou esta opinião, que só foi desmentida quando apareceram os monumentos coevos, que lhe asseguraram outra genealogia mui diversa. Não é menos curioso o facto moderno. Imprime-se em Lisboa uma colecção das Árvores de Costado das Famílias Titulares deste Reino; e ao fazer-se menção da casa titular dos Marqueses de Borba, introduzem-lhe como actual sucessor desta (a muitos respeitos) grande casa um Fernando de Sousa Coutinho, herdeiro que nunca existiu. (1) Ora o colector é contemporâneo, pois a obra saiu impressa em 1829; e dado o caso que ele não chegue a emendar as por ele próprio chamadas consideráveis inexactidões (2) da primeira parte da sua obra, como se defenderão os vindouros de terem como certa e indubitável esta sucessão masculina? se isto suceder a um pobre monge desviado do século, e entregue por estado a outro género de considerações bem diferentes das que pede uma questão genealógica?

VIII

Tão convencido estava o primeiro divulgador da opinião, que tenho combatido, e espero desalojar, pelo menos, das suas mais fortes oposições, que afim de tornar mais crível, ou verosímil o testemunho do monge de Fleury, amontoa provas sobre provas; e apesar de que estas já foram examinadas, e refutadas tão larga, como victoriosamente pelo sábio já citado, cumpre-me todavia fazer os meus leitores como árbitros do peso, que elas merecem. Já combati as provas tiradas do frívolo argumento de que, vista a pouca distância, que há de Besançon a Dijon era como indiferente para o caso o haver nascido em Besançon; porém as outras devem ter-se em conta de mui superiores no género de fraqueza e inverosimilhança. Deixemos falar o próprio Godofredo. Em terceiro lugar (diz ele) Laonico Chalconcondylas (que vivia pelos anos de 1460) refere nomeadamente no livro 5º da sua história (porque assim o leu em algum historiador) que os reis de Portugal descenderam da Casa Real de França: Rex Portugalliae ortus est ex familia Galliae regum. Se o douto Salazar e Castro desfez tudo isto, como de um sopro, fazendo ver a distância, que vai do ano 1060, em que dizem ter nascido o Conde D. Henrique, até 1460, eu seguirei outro caminho; e parecendo reforçar o argumento dos meus contrários, daí mesmo tirei forças para mais fácil e seguramente o destruir. Na passagem de Chalconcondylas trata-se das alianças matrimoniais dos reis castelhanos com as filhas, e próximas parentes dos reis de Portugal; e destes, que floresciam no séc. XV, a saber, do Senhor D. Duarte, ou do Senhor D. Afonso V, é que o historiador grego afirma especialmente, e no singular, que descendem os reis de França; e tão longe estava o autor de subir até à pretensa origem dos nossos reis, que na edição parisiense de 1650 lhe pôs o editor à margem, como em adição às palavras Galliac Regum, a palavra Lutzburgica, (1) dando a entender, que a Casa de Luxemburgo, e não a de Bourbom, era verdadeiramente a que dera origem aos nossos reis; porém eu consinto, que ás sobreditas palavras se dê toda a extensão e força, de que elas forem susceptíveis; e confesso aos meus leitores, que uma história coeva do nosso Conde D. Henrique diz expressamente, que este conde venia de sangre real de Francia; mas quem dirá que para vir da casa real de França era condição sine qua, o ser bisneto de um rei de França? Para que ele viesse, ou descendesse da casa real de França era de sobejo, que ele pertencesse à casa de Borgonha Condado, ou à casa de Lorena; e por isso não triunfa, nem triunfará jamais a opinião, que a todo o custo o deseja manter na casa de Borgonha Ducado, pois quando assim fosse é bem natural que a um bisneto, sobrinho e primo do reis de França coubesse outra melhor designação e qualificação, e que os historiadores se explicassem de outra maneira, isto é, dizendo francamente, que este príncipe era da Família Real de França. A quarta prova é tal, que o meu silêncio é mais uma graça especialíssima, quase faz ao autor, do que um formal desprezo; e sem que eu demore os meus leitores na quinta prova deduzida de que o nome Henrique era mais usual em França, do que em outra qualquer parte das Gálias 82), ou na sexta não menos extravagante, do que as armas dos príncipes de Portugal antes do Senhor D. João I eram as flores de liz, não os privarei de examinarem a sétima, que vem a ser: "Em sétimo lugar os principies e os reis, que vêm dominar em país estranho, costumam de bom grado servir-se, e adiantar com preferência os seus naturais e do país da sua origem, mais que os do país em que dominam; e por isso nós achámos que o próprio Conde D. Henrique, e seu filho ElRei D. Afonso empregaram em Portugal, e deram comandos de tropas a um Giraldo, sem pavor, que foi causa de se tomar Évora aos mouros, e a um D. Egas Moniz, ou Hugo de Monains, que foi aio de sobredito Rei D. Afonso; assim como deram o Arcebispado de Braga a um Giraldo, e o Bispado de Lisboa aum Gilberto, que são nomes franceses muito usados então, e depois no Ducado de Borgonha (3)." É somente no Ducado de Borgonha seriam usados estes nomes? Não haveria um só inglês, que se chamasse Gilberto. Oh! se havia, e por sinal que foi inglês o primeiro Bispo de Lisboa D. Gilberto. Embora D. Giraldo nascesse em França, porém na sua eleição para Arcebispo de Braga influiu mais quem o mandou vir de França, isto é, o Arcebispo de Toledo D. Bernardo, que o próprio Conde D. Henrique; porém ferve-me todo o sangue ao ver, que há escritor tão audaz, e pouco reflectido, que se abalança a querer esbulhar-nos de um dos nossos mais ilustres e famigerados conterrâneos, ou de Egas Moniz. Este modelo raríssimo de lealdade portuguesa era português, e natural da província do Minho. Descendia sim de D. Muninho Viegas, o gasco, nome este conservado nos nossos mais antigos Nobiliários, e que parece mostrar, que este cavalheiro nascera na Gasconha; mas que tem esta província, então ducado, e que por largos anos fez parte dos domínios da Coroa da Inglaterra, com o Ducado de Borgonha? Até geograficamente consideradas são bem diversas. mas para que demoro eu os meus leitores, pode ser já inquietos, e desejosos de que eu proponha o meu sentir? Se os demoro, é sempre com os olhos fitos na utilidade da nossa causa, pois é de interesse comum, que as nossas antiguidades se coloquem outra vez no lugar, que lhes pertence, e que tão indevidamente lhes foi roubado.

IX

Do PROGRESSO histórico da presente questão facilmente se deduz, que os próprios André Duchesne e os irmãos Sammartanos, assim como os autores da Arte de Verificar as Datas, conheceram muito a fraqueza, e o lado acessível e desguarnecido, que mais cedo, ou mais tarde facilitaria o exame, e conseguintemente a derrota dos seus juízos e pareceres. Notemos pois alguma parte dos esforços e diligências, que eles fizeram para sustentar e corroborar uma opinião, que saíra tão defeituosa das mãos do seu primeiro defensor. Querendo eles dar ao Príncipe D. Henrique, tiveram de recorrer aos autores quase coevos; porém de que maneira o executaram? André Duchesne cita o monge de Evreull Orderico Vital, e dele transcreve as seguintes palavras. "Henricus vero quiprimogenitus erat (Roberti) Hungonem et Odonem genuit, sed ante Patrem suum obiit (1)." Tems pois dois filhos do Príncipe Henrique, a saber, Odo e Hugo, o que não exclui outros: porém eu recorrendo à fonte, ou à história de Orderico Vital, publicada pelo próprio André Duchesne, acho estas outras palavras: "Henricus primogenitus ejus, ipso (Roberto) jubenteuxorem duxit, ex qua filio tres Hugonem e Odonem atque Robertum Lingonensem Episcopum genuit. (2)"

Determina o próprio historiador o número dos filhos do Príncipe Henrique, e é óbvia a discrepância entre os dois textos alegados; e já se apalpa que a ingerência de um quarto filho tem gravíssimo impedimento. Ao mesmo passo fazia-se necessário, que estes genealogistas franceses se desembaraçassem da autoridade de D. Rodrigo Ximenes, Arcebispo de Toledo, que chama o nosso Conde D. Henrique primo co-irmão de Raimundo Conde de Galiza; e como dispõem eles a verificação deste parentesco? André Duchesne, na sua história dos reis, duques e condes de Borgonha, confessa ignorar o nome da mulher de Henrique, filho do Roberto, primeiro Duque de Borgonha; e os mais, ou Sammartanos, laboravam na mesma incerteza. Apareceu então, e bem a propósito de acudir a estes homens aflitos e perplexos uma breve memória tirada de um calendário da igreja de Besançon, na qual se lia que Sibila, mãe do Duque de Borgonha dera um manso, ou passal à igreja daquela cidade; e apesar de que ainda então se ignorava o nome da mulher de Odo I (3) e apenas fundados em que mãe de duque vem a dizer senhora, que não chegou a ser duquesa, supuseram que esta Sibila foi a mulher do Príncipe Henrique, a mão de dois duques de Borgonha e do nosso D. Henrique, o que todavia ficou tão mal seguro, que os adicionadores da história genealógica da Casa Real de França apontaram, que Orderico Vital chamara Sibila à mulher de Odo I. (4) Vejamos porém qual é o fundamento, em que se apoia a certeza, de que a mulher de Odo I não se chamava Sibila, porém Mafalda, ou Matilde. Já tinha chamado Sibila à mulher de Odo I; porém uma carta que de Beaume foi escrita a Mr. Rob, morador em Chalons, e que trazia a data de 3 de Fevereiro de 1628, o fez mudar de opinião, e lhe deu toda a certeza de que a Sibila mãe do Duque de Borgonha era sem questão a mãe dos duques Hugo, Odo e do nosso D. Henrique. (5) Tratando-se de coisas de Portugal basta que apareça uma carta do séc. XVII para levar ao último ponto de evidência um sucesso do século XI! Bem sei que é mais fácil de provar pelo contexto de Orderico Vital, que a esposa de Odo I era filha de Guilherme, 2º do nome e Conde de Borgonha, do que fixar-se-lhe com toda a certeza o seu nome. Sou tão sincero, que não ocultarei, que as tradições de Claraval, e até documentos, que é desnecessário citar, dão o nome de Matilde à mulher de Odo I; mas que contradição há, para que a mesma pessoa tivesse dois e mais nomes? O próprio André Duchesne refere muitos exemplos disto, e a própria história genealógica de França quando trata da mulher de Raimundo I de Borgonha, e mãe da chamada Sibila confessou, que se chamara umas vezes Adelaide, outras Judite de Normandia. (6) Apesar de todas estas concessões digo e afirmo que houve duques na Borgonha, antes que o Rei de França Roberto, o devoto, se apoderasse deste ducado, e o entregasse a seu filho Roberto; e quem nos assegura, que a tal Sibila benfeitora da Catedral de Besançon não fosse mulher ou mãe de algum dos mais antigos duques de Borgonha?

X

Vencida a maior dificuldade surdiu logo outra, que mais se ocultou, do que se desvaneceu até hoje, e vem a ser esta. Se a mulher do Príncipe Henrique era filha de Raimundo I, também era irmã de Guilherme, o cabeça atrevida; e se uma filha deste, ou Matilde de Borgonha, foi mulher do Duque Odo, segue-se necessariamente, que este duque teve por esposa uma sua prima co-irmã, o que naqueles tempos, e ainda em grau muito mais remoto seria impraticável. Segundo o testemunho de Orderico Vital (diz o próprio Duchesne) a mulher do duque Odo era filha de Guilherme (o cabeça atrevida) "no que parece todavia haver contradição, pois neste caso teria por mulher uma prima co-irmã. Talvez Orderico Vital confundisse com esta a aliança do Príncipe Henrique seu pai, ou então esse Guilherme era outro diferente daquele, que, usando do mesmo nome, governava a Borgonha (1)." Vemos pois nesta confissão do reu alguma coisa de que adiante se poderá usar em grande proveito da nossa causa, e ou se há de renunciar o testemunho de um autor quase coevo e de grande autoridade, ou por esse lado não faz fortuna o excogitado arbítrio, para conciliar o texto do Arcebispo de Toledo com a opinião de Godofredo.

XI

Faltava-lhe ainda outro, e não pequeno embaraço, qual era o não aparecer o nome do nosso Conde D. Henrique nos antigos documentos das suas Borgonhas, que não só andam espalhados na Gallia Christiana e nas colecções dos Maurianos Achery, Martenn e Durand, mas também reunidos na obra francesa intitulada Colecção de Muitos Documentos Curiosos que Podem Servir de Subsídios Para  a História de Borgonha; e como efeito parece incrível que em tantos centros de escrituras e doações, nem vestígios se descobrissem de um príncipe da Casa Ducal de Borgonha, que antes de sair para a hespanha forçosamente deveria assistir a muitos actos públicos, e confirmá-los, segundo era usual nestes tempos, caso fosse verdadeira essa origem. Mas porque arte desatariam os adicionadores da história genealógica de França este nó, que sobremaneira os incomodava e afligia? Supõe o nosso D. Henrique em Dijon pelos anos de 1102, pois (dizem eles) é certo que (o Conde de Portugal) residia em Dijon em 1102, porque assinou a carta, que seu irmão mais velho o Duque Odo expediu em favor da Abadia de S. Benigno da própria cidade, antes de partir para a Terra Santa, e citam à margem a colecção de Perard, páginas 204. Felizmente apareceu na biblioteca pública desta cidade de Lisboa a colecção de Perard (2), que foi avidamente consultada a página 204, onde termina a sobredita doação do Duque de Odo, e onde lemos:

"Ego Odo Dux Burgundiae hanc cartam signo et confirmo, et filiis, et fidelibus meis signandam trado, S. Hugonis filii mei,signum Herici filii mei". Fiquei assombrado da manifesta cavilhação com que se mudou o filli para fratris, e desde então fiquei mais propenso que nunca a duvidar, que o nosso Conde D. Henrique descendesse da Casa de Borgonha Ducado; porque sendo assim, apareceria mais de uma vez a sua assinatura nas doações de seu pai, de seu avô, e de seu irmão, o que está bem longe de acontecer, pois folheando-se toda a colecção de Perard, e sendo fácil descobrir nela toda a certeza da existência dos três filhos do Príncipe henrique nomeados por Orderico Vital, nem sequer indícios mui leves se encontraram de ter havido um quarto filho chamado Henrique.

XII

Também lhes fazia embaraço, que falecendo o Príncipe Hugo, primeiro filho do Duque Roberto, alguma coisa mais tarde, e já na declinação do séc. XI, e sendo natural, que o Príncipe Henrique só depois da morte de seu irmão mais velho contraísse matrimónio, o que fazia aparecer outro Henrique
 de mui verdes anos para militar debaixo das bandeiras do rei castelhano, e conseguir pelo seu esforço e larga série de acções de valor a soberania de Portugal, moveram-se destas razões para nos darem o Príncipe Hugo por morto em 1057, e o nosso D. Henrique nascido em 1060, que é prazo curto, porém admissível; onde porém é necessário concluir, que o primeiro soberano de Portugal morreu na força da idade, ou de 52 anos, o que tem contra si o uniforme testemunho das nossas crónicas. A este inconveniente sucedia outro maior e mais digno de atenção. Prova-se por documento autêntico (3) do ano de 1059, que neste ano o Príncipe Hugo assistiu em Reims à pomposa cerimónia da sagração do Rei Filipe I, o que forçosamente nos leva a fixarmos a época do matrimónio do Príncipe Henrique em 1060, e conseguintemente se faz incrível, que o nosso D. Henrique, ou quarto filho, nascesse no próprio ano primeiro deste matrimónio, excepto se os meus adversários mostrarem, que o primeiro parto de Sibila de Borgonha foi extraordinário, e fora do andamento das gerações humanas. E como se desembaraçam eles deste novo impedimento? Dizem que por equivocação foi substituído o nome de Hugo ao de Henrique; e fundando-se numa crónica anónima antecipam dois anos a morte do Príncipe Hugo, referindo-a a 1057!

XIII

Também lhes foi necessário darem algum destino a certo Henrique da Família Ducal de Borgonha, que florescia por esses tempos, e que morreu no hábito de Cister pelos anos de 1130; e como poderia haver lembranças de que este monge fosse reputado quarto filho do Príncipe Henrique, pois faleceu em 1130, e então mesmo lhe faltaria alguma coisa para encher os setenta de idade, fazem monge de Cister o Príncipe Henrique, filho do Duque Odo (fundador do mosteiro), e assim forcejam por desviar toda a conjectura desfavorável ao seu intento. Vendo-me pois obrigado pela força da questão a indagar os destinos do Príncipe Henrique, irmão do Duque Hugo, achei e provo, que este Henrique não é o falecido em Cister pelos anos de 1130; pois é certo que ele acompanhava o duque, seu irmão, que tratando da sua morte, que sobre modo o angustiára, e de fazer esmolas pelo seu eterno descanso, usa destas palavras, que também foram transcritas, posto que não felizmente, pelo cronista D. Fr. Ângelo Manrique: "Ego igitur Hugo Dux Burgundiae, fratris mei Henrici morte turbatus, e illius dulci solatio destitutus, ad animae ipsius salutem expetendam etc. (1)" confessa ter perdido a doce consolação, que lhe trataria o viver com o Príncipe Henrique, e mostrar-se cuidadoso por lhe fazer quantos sufrágios lhe fossem possíveis. Ora este modo de falar e sentir quadrava bem pouco a um irmão, que se tivesse enterrado nos claustros de Cister, e que trabalhando aí largos anos por merecer a palma celeste, não devia pôr em tantos cuidados a sua família, que pela sua dor excessiva mostraria, que não contava ter mais um protector no céu. Acrescenta porém o Duque Hugo mais outra circunstância importante, e é ser tudo quanto ele fazia de aprovação de Joncerano, Bispo de Langres. "Haec ominia Domus Jonceranus Episcopus laudavit, confirmabit," porém o governo deste Jocerano apenas chegou ao ano de 1125; (caso não dimitisse o onus do episcopado de 1121, como alguns querem) pois em 1127 já o seu sucessor Wilenco andava no segundo ano do seu governo (1); além de que na própria colecção de Perard vem certezas, de que em 1129 não era Joncerano o bispo de Langres (2): de tudo isto reunido se conclui, que o monge de Cister Henrique não foi, nem podia ser o irmão do duque D. Hugo; que, se o fosse, como se apagaria de todo em Cister a memória de que o fundador da casa ali tivera um sobrinho monge?

XIV

Não sendo já desprazíveis estes indícios para que nos faltasse aquela segurança com que foram acreditados os historiadores franceses, acrescem várias circunstâncias externas, que muito influem para o caso de avaliarmos o pesa o das suas respectivas autoridades. Pretensões de coroa portuguesa já bem declaradas pela Rainha de França, Catarina de Medicis, que se fez descendente da Condessa de Bolonha, primeira mulher DelRei D. Afonso III; a contínua rivalidade entre as casas de Bourbom e Áustria, pois bem notório é o ciume em que ardia a primeira, ao ver a segunda reinante em Portugal, moviam os historiadores franceses a preparar de longe os meios de se ligar, quando fosse possível, a sorte de Portugal com os interesses da França e um deles era deduzir a origem dos nossos reis do mesmo tronco da família reinante em França. O primeiro, que assoalhou o MS. de Fleury já em 1587 havia mostrado numa obra, que intitulou De la Grandeur, Preeminences et Prerogatives des Rois et du Royaume de France, o quanto era adverso à Hespanha, e aos seus príncipes, e o que trabalhou a já por vezes apontada Genealogia dos Reis de Portugal, e que é tido geralmente por demonstrador desse pretenso axioma histórico, recebia tenças dos reis de França aos de Hespanha, e fez imprimir em 1655 um Tratado Sobre os Direitos do Rei de França a Muitos Estados e Senhorios Então Possuidos por Muitos Príncipes Deus Visinhos, e que forçosamente era incluido o Rei de Hespanha, que foi o alvo principal dos seus tiros; donde se vê, que muito mais o interesse da sua Côrte, do que a verdade histórica o moveu a defender mui acaloradamente, que os reis de Portugal eram da linhagem Capeciana. O mais é, que também os interesses políticos influiram muito para que os dois portugueses Fr. António Brandão e Duarte Ribeiro de Macedo pugnassem por aquela opinião; pois é bem sabido, que o primeiro, suspirando pela liberdade da sua pátria; e o segundo querendo promover, quanto nele era, a causa de Portugal na Côrte de París, não só abraçaram facilmente, porém até defenderam com ardor o que lhe parecia vantajoso para os seus reis naturais; e persuadam-se os meus leitores de que não foi esta a primeira ve, em que os interesses políticos arrastaram mui graves historiadores para escolherem de ligeiro, e sem exame, o que era mui conforme com as suas ideias e propensões.

XV

Mas que opinião se deverá adoptar sobre a genealogia do Conde D. Henrique? Receando espantar os meus leitores, e querendo prepará-los para um golpe, que sendo intempestivo causaria efeitos contrários ao meu desígnio, proporei certas coisas preliminares e fundamentais, que me serviram de guia para acertarmos, e não perdermos o tino. Quem é o historiador mais antigo que, sem falar vagamente da estirpe de D. Henrique, nos apresenta algum fio com que nos possamos desembaraçar desta espécie de labirinto? E o Arcebispo de Toledo D. Rodrigo Ximenes, que nasceu em tempo do Senhor D. Afonso Henriques, e já era adulto, e sacerdote nos últimos anos do reinado deste soberano, e que em pontos desta entidade não procederia sem que primeiramente fizesse as devidas averiguações; e por certo que na Côrte dos reis leoneses e castelhanos haveria nesses dias cópia de sabedores da linhagem do Conde D. Henrique... Chama a este príncipe congermanus, primo co-irmão do Conde D. Henrique, tendo já apontado, que viera das partes de Besançon: "Quam (Theresiam) duxit Comes Enricus ex partibus Pisontinis Congermanus Raimundi Comitis Patris Imperatoris, etc. (1)." Muito embora alguns modernos, para deprimirem esta autoridade, acusem a ignorância do Arcebispo, que chamou Condessa de Babilónia à Condessa de Bolonha, o que só recai sobre os amanuenses, e nunca sobre um tal historiador (2); porém esses mesmos deveriam lembrar-se, de que ele, tratando da primeira rainha de Portugal D. Mafalda acertou, quando o Livro de Noa, a crónica MS. de Alcobaça, e o próprio Conde D. Pedro erraram torpemente nesta matéria.

(a continuar)
em nov/2014, http://ascendensblog.blogspot.pt/2014/11/do-conde-d-henrique-por-d-fr-fortunato.html
[22fev2018]